ESTE ESPAÇO É DE VALORIZAÇÃO CULTURAL DOS MODOS DE VIDA DOS AGRICULTORES FAMILIARES, RIBEIRINHOS, POVOS TRADICIONAIS E INDÍGENAS DO BRASIL.

Os "Cunhas do Brasil" são uma família imensa que vive entre uma cadeia de montanhas na Zona da Mata de Minas Gerais. Dá-se conta que os primeiros Cunhas chegaram por volta da década de 30 e já tornariam famosos nas redondezas, a partir de uma missão ousada e empreendedora de conquista: A temida subida de uma enorme montanha que ficava ao pé da vila - ficou conhecido como Morro do São Luiz. Os Cunhas queriam é ficar na roça!
Com extrema coragem e perspicácia, montados em cavalos, charretes e em carros de bois, a caravana chegou a uma baixada e até hoje, passados mais de 80 anos do célebre ato, ainda se encontram no local e são símbolos históricos de que o meio rural/florestal é o melhor lugar para se viver. Diante da dificuldade de acesso à vila, ficaram praticamente isolados por mais de 40 anos fazendo com que desenvolvessem um linguajar próprio e modos específicos de sobrevivência. Atualmente, são famosos por produzirem o melhor café da região e uma cachaça mardita de boa...
...e não duvide: vivem felizes e satisfeitos assim como sabiá cantando!

10 de jun. de 2022

Espinho de Chão

Pintura: Bella

Era para ter chegado na casa de Zé Carvoeiro na noite seguinte. Na baixada que parei, havia um pequeno córrego que lutava para manter-se vivo e descer com suas frágeis águas, o penhasco da serra do Adão, que espreitava a comunidade da Serra dos Milagres. Meu cavalo Rançoso, estava cansado, depois de trotar por três dias intermináveis na secura do sertão, que desolava homens e animais. Não haveria como chegar a casa de Zé no dia combinado. Seria perigoso a noite, visto que andavam por aqui um bando de criminosos vindos da cidade, que saqueavam e que metia medo em qualquer andarilho, ainda mais os desavisados. Parecia que a terra aqui agora tinha dono. Não eram mais os coronéis da cana ou do gado, mas os coronéis do crime. A terra parecia a mesma, seca, bela e inóspita; com uma orquestração de estrelas no céu que são difíceis de ver com tamanha beleza por essas bandas. Não vinha por aqui à toa. Havia um motivo único: pedir a filha de Zé em casamento. Já conhecia Mariazinha de muito tempo. Estudamos juntos na surrada escola da comunidade desde que éramos crianças. Depois, advindo da seca e da falta de oportunidades na roça, meus pais se mudaram para uma colina mais distante daqui, com mais água e mata. Mas, sempre tive contato com ela, pois nos encontrávamos na feira da cidade de Israel, onde levávamos a nossa produção para vender na feira do município. Sempre soube que Mariazinha era a mulher da minha vida. Meu coração nunca bateu por ninguém. Todas as mulheres que tive, não passaram de uma aventura de peão. Nunca dei a nenhuma delas, esperança de que pudéssemos passar de uma boa dança de forró ou de uma noitada qualquer. O seu pai, o velho Zé Carvoeiro, conhece a minha família há muito tempo, desde quando meu pai o ajudava na queima de carvão, um dos únicos modos de fazer dinheiro à época. Hoje, o pouco de mata de resta só serve para abastecer os fogões a lenha das casas. Mariazinha ficou aqui morando com os pais e cuidando dos muitos irmãos mais jovens que ela. No último encontro que nos vimos na feira, a dois meses, combinamos que não esperaríamos mais tempo, porque o tempo corre e a vida é do agora. Já tínhamos vivido nossa juventude e estávamos sedentos por fazer a nossa vida juntos, agora que tenho condições de manter uma família com o trabalho da terra. Esperaria só a final da colheita e da panha do milho e do feijão, e no dia de Nossa Senhora Auxiliadora iria até sua casa para ter uma conversa com seu pai e a sua mãe. Nunca gostei da ideia de viver solto por aí, envolto as tropas e rotas de gado que as grandes fazendas tem na região. Gosto de ter um lugar para chegar, chamar de meu. Onde possa descansar sem apoquentar ninguém. Trabalhar duro sem ser mandado pra ir pra direita ou esquerda. Não sei como será a reação do velho Zé, visto que, sempre teve um olhar admirado pela filha mais velha, companheira de suas andanças pela mata e pela roça, além de ser companheira do pai em todas as rezas e missas na catedral de Nossa Senhora Auxiliadora em Maria da Fé. Confesso que, sempre fui as rezas e missas a procura de Mariazinha. Rezava olhando para o lado, envolto a uma vontade de vê-la, de descobrir se estava no encontro desse dia, em que lugar estava sentada, sempre entre seu pai e sua mãe. Foi em um desses encontros, na fila da comunhão, que peguei a sua mão pela primeira vez, com um zelo para que seu pai e sua mãe não pudessem perceber nossa intimidade. Mariazinha me falava dos seus sonhos: Correr pela mata á fora, plantar folhas e margaridas, ter seus bichos de estimação, sua cozinha com suas panelas bem ariadas presas na parede como se fossem quadros famosos; cuidar do pomar e ter filhos. Sonhava em ver a praia pela primeira vez comigo. Sempre pensei que a minha relação com Mariazinha fosse como uma raiz de cajá, forte, opulenta, profunda.  Envolto a esses pensamentos e no cansaço desse galope de dias quentes, adormeci ao lado da pequena fogueira feita de arbustos e galhos secos a beira do córrego, sonhando com o amanhã onde teria meu amor de minha vida palavreado, resolvido. Já traria Mariazinha comigo, era o que pensava.

Acordei com um vento frio e com o cavalo fazendo barulho com seus trotes em círculo, como se dissesse para continuar nossa caminhada até o destino. Dormi coberto sobre uma manta de couro feita pelo meu pai, em casos de viagens mais distantes e de friagens inesperadas pela caminho. O sol ainda não havia saído, coberto por nuvens cinzas grandiosas, prevendo que, poderia haver mudança no tempo. Haveria umas três horas de viagem até chegar a casa de Mariazinha. Fui trotando, sonhando e planejando os próximos passos, depois dessa conversa que selaria meu destino para sempre. A viagem até lá correu tranquila, sem muitos assombros, apenas uma pequena cascavel que estava na beira da estrada e alguns gritos destemidos ao longe da serra. Não tive medo dos criminosos, pois sabia que atuavam no escuro, no breu da noite, amedrontando passageiros, andarilhos e moradores do vale. Na minha bagagem sempre trago uma cartucheira e uma faca dada pelo meu avô paterno, que me ensinou a manusear, limpar e atirar como ninguém. Com o passar das horas, fui avistando ao longe, a casa de Zé Carvoeiro, ao pé da Serra do Adão, uma casa branca, pequena, mas muito bem cuidada. A mãe de Mariazinha, Dona Adelaide, era muito cuidadosa e caprichosa, plantando flores e frutos em volta da casa e até as construções para o gado, porcos e galinhas tinha o dedo da Dona Adelaide, que queria ver tudo bonito, bem feito.

Quanto mais me aproximava, meu coração batia mais forte, a ansiedade tomava conta e a vontade de ver Mariazinha rebatia todos os meus pensamentos e males. Quase chegando, vi que o velho Zé Carvoeiro estava na janela da casa, com seu chapéu de couro desbotado, sua barba branca caudalosa que toca abaixo do queixo, sempre fumando um cigarro  feito com palha de milho seco de sua plantação. Contendo-me, cheguei na beirada da porteira e acenei com as mãos, dizendo para o velho meu nome que ele bem já conhecia há anos. Esperava que Mariazinha aparecesse na outra janela, como ela sempre fazia quando eu me apresentava a porta de sua morada. Ao me aproximar, vi que o velho Zé estava mais cabisbaixo, silencioso, quieto e contido mais do que de costume. Ele sabia que existia algo entre eu e sua filha. Sempre estivemos juntos e ligados desde os tempos idos da escola e na feirinha. Não escondíamos nosso entendimento, mas nos contínhamos em respeito aos nossos pais. A frente do velho, cumprimentei e salvei em nome do nosso senhor Jesus Cristo. A ansiedade de ver o rosto de Mariazinha era tamanha, que mal conseguia conversar com o seu pai. Ficava olhando para a janela ou para o jardim, buscando vê-la o quanto antes, ser notada a minha chegada e presença. Zé Carvoeiro deve ter percebido minha ansiedade e minha busca por algo que não estava em seus olhos.

- Está procurando alguma coisa João? (perguntou o velho)

Desconversando, falei de como a colônia estava bonita, sem deixar de notar que algumas plantas e flores estavam tomadas por capim e matos invasores e que algumas fruteiras estavam com os pés cheios e com frutas podres ao chão. Sem pestanejar, Zé Carvoeiro me olhou como uma flecha, fumando silenciosamente seu cigarro, com uma face séria. Sabia que ele queria me dizer algo.

- João, se você veio aqui ver minha filha Mariazinha, perdeu sua viagem. Faria muito gosto que você e ela pudessem ficar juntos. Sempre percebi seu interesse por ela João. Só que, meu filho, Mariazinha nos deixou, já faz algumas semanas. Partiu com um rapaz mal encarado, como esses que chegaram por essas bandas. A sua mãe está de cama desde o dia  em que saiu com esse merda no entardecer do sol. Não come, não cuida das plantas, das ervas, do almoço. Sempre fica deitada na cama, coberta com uma manta preta, chorando de dia, sussurrando agonias de noite pela casa, retornando para a cama ao amanhecer. Eu não consigo acreditar que isso aconteceu. Minha boa Mariazinha, ficou virada pelo diabo. No dia que foi embora, o coisa ruim ficou lá na porteira, esperando, enquanto ela nos deu um adeus e disse que seria passageira do mundo agora, que iria se juntar com essa desgraça de homem. Nem nos deu tempo de chorar ou de dizer nada, saiu tão rápida pelo terreiro, parecia que estava até com uma magia. Parecia outra pessoa, não a minha filha. Nem olhou para trás, nem um pingo de dúvida sentiu. Desse dia para cá parece que tudo morreu. Volte para casa João, você é um bom homem, esqueça esse flor que conheceu que virou espinho de chão.

(Leo Canaã)

7 de jan. de 2022

Sertão do Meu Coração

Foto: André Dib - PARNA Catimbau (PE/Brasil)

O sertão é do tamanho do mundo.
Sertão é dentro da gente.
O sertão é sem lugar.
O sertão não tem janelas, nem portas.
O sertão é uma espera enorme. 

(Guimarães Rosa)